domingo, 26 de abril de 2009

E por falar em Clarice...Onde anda Pessoa?


Quando me sentei para escrever este texto, o texto não era este, e nem era esta minha intenção. Era sobre Clarice Lispector que falaria, mas de repente “não mais que de repente” me vejo rascunhando sobre Pessoa, de modo que não pude deixá-lo, já que "ele mesmo" chamava-me. Ando ultimamente enredada por sua obra por uma causa diferente da que costumo enredar-me. Em seis anos de profissão, pela primeira vez revisito Pessoa como objeto de estudo. O amor ao ofício que me escolheu, empurrou-me para esse abismo, impedindo-me de dizer – Não – a esta missão. Temo tocar em sua obra, porque para mim, ela reside em uma dimensão onde a linguagem não alcança. Uma espécie de "entre lugar", como os escaninhos da alma, da poesia, ou da escuridão do retorno de Orfeu. Entrar em seu universo é, com certeza, adentrar num labirinto sem o Fio de Ariadne, pois sua poesia é um enigma, cabe a nós decifrá-la e, às vezes, perdemo-nos e não encontramos respostas para as inúmeras perguntas, o que não poderia ser diferente, já que nem o próprio poeta obteve respostas para suas interrogações. Tentar compreender a obra de Fernando Pessoa é deparar-se com inúmeras indagações, porém saber as respostas – eis o mistério – deste que diz ser sua poesia um “drama em gente” que se escondeu por trás de máscaras, “persona,” na tentativa de encontrar-se numa busca que não lhe dá respostas, por mais que se multiplique, fragmente-se, jamais encontrará a totalidade que anseia “Quem sou que assim caminhei sem eu/ Quem são que assim me deram aos bocados / A reunião em que acordo e não sou meu?” Em todas as tentativas, afinal, com que se depara é o vazio que vai se mostrar em variadas metáforas. Fernando Pessoa navegou por muitos rios, “além do Tejo”, sua obra comporta, além de poemas e prosa, uma infinidade de textos: cartas e ensaios críticos sobre variados temas. Esses textos são marcados por uma carga intelectual que os ombros de Pessoa suportaram, e uma ironia inteligente, própria de sua personalidade criativa e narcisista. Dentre os vários temas discutidos pelo poeta, escolhi um que talvez belisque as mentes mais acomodadas, acostumadas a ter, como seus, conceitos ainda tão distantes de nós, como a “Verdade”. As mentes que se pensam inquietas, talvez se sintam acolhidas no “desassossego” pessoano. Se é que em Fernando Pessoa, pode haver alguma espécie de acolhimento. Sujeito inquieto, perdido na linguagem "o menino da sua mãe", assim o vejo. Com o Deus "humano e menino" de seu mestre, aprendi a olhar para as coisas, e como ele espantar-me com “a eterna novidade do mundo”, e assim, sigo enganosamente feliz, crendo naquilo que nem o próprio foi capaz de crer. Deleitem-se com o discurso belicoso sobre a “Verdade”, que este homem inquietante nos deixou. Poderia dizer de minhas sensações sobre a "Verdade", porém paradiando o próprio poeta, concluo:"Sentir?Sinta quem lê!" .Segue o texto de Pessoa.

«AVerdade é para mim igual a Incerteza e não-ser — não existe e não é verdade, portanto.»

"Toda a metafísica é a procura da verdade, entendendo por Verdade, a verdade absoluta. Ora a Verdade, seja ela o que for, e admitindo que seja qualquer coisa, se existe existe ou dentro das minhas sensações, ou fora delas ou tanto dentro como fora delas. Se existe fora das minhas sensações, é uma coisa de que eu nunca posso estar certo, não existe para mim portanto, é, para mim, não só o contrário da certeza, porque só das minhas sensações estou certo, mas o contrário de ser porque a única coisa que existe para mim são as minhas sensações. De modo que, a existir fora das minhas sensações, a Verdade é para mim igual a Incerteza e não-ser — não existe e não é verdade, portanto. Mas concedamos o absurdo que de que as minhas sensações possam ser o erro, e o não-ser (o que é absurdo, visto que elas, com certeza, existem) — nesse caso a verdade é o ser e existe fora das minhas sensações totalmente . Mas a ideia Verdade é uma ideia minha; existe, por isso dentro das minhas sensações: portanto, ou quero Verdade Absoluta e fora de mim, ou verdade existente dentro de mim — contradição, portanto, erro, consequentemente.
A outra hipótese é que verdade existe dentro das minhas sensações. Nesse caso ou é a soma delas todas, ou é uma delas, ou parte delas. Se é uma delas, em que se distingue das outras? Se é uma sensação, não se distingue essencialmente das outras; e para que se distinguisse, era preciso que se distinguisse, essencialmente. E se não é uma sensação, não é uma sensação. — Se é parte das minhas sensações, que parte? As sensações têm duas faces — a de serem sentidas e a de serem dadas como coisas sentidas, a parte pela qual são minhas e a parte pela qual são de «coisas». É uma destas partes, que a Verdade, a ser parte das minhas sensações, tem de ser. (Se é de qualquer modo um grupo de sensações unificando-se ao constituir uma só sensação, cai sob a garra do raciocínio que conduz à hipótese anterior). Se é uma das duas faces — qual? A face «subjectiva»? Ora essa face subjectiva aparece-me sob uma das duas formas — ou a da minha «individualidade» una ou de uma múltipla individualidade «minha». No primeiro caso é uma sensação minha como qualquer outra e já fica refutada no argumento anterior. No segundo caso, essa verdade é múltipla e diversa, é verdades — o que é contraditório com a ideia de Verdade, valha ela o que valer. Será então a face objectiva? O mesmo argumento se aplica, porque ou é uma unificação dessas sensações numa ideia de um mundo exterior — e essa ideia ou não é nada ou é uma sensação minha, e se é uma sensação, já fica refutada essa hipótese; ou é de um múltiplo mundo exterior, e isso reduz-se às minhas sensações, então pluralidade de modos é a essência da ideia de Verdade.
Resta analisar se a Verdade é o misto das minhas sensações. Essas sensações ou são tomadas como um ou como muitos. No primeiro caso voltamos à já rejeitada hipótese. No segundo caso a Verdade como ideia desaparece, porque se consubstancia com a totalidade das minhas sensações. Mas para ser a totalidade das minhas sensações, mesmo concebidas como minhas sensações, nuamente, a verdade fica dispersa — desaparece. Porque, ou se baseia na ideia de totalidade, que é uma ideia (ou sensação) nossa, ou não se apoia em parte nenhuma. Mas nada prova, mesmo, a identidade de verdade e totalidade. Portanto, a verdade não existe.
Mas nós temos a ideia ...
Temos, mas vemos que não corresponde a «Realidade» nenhuma, suposto que Realidade significa qualquer coisa. A Verdade é, portanto, uma ideia ou sensação nossa, não sabemos de quê, sem significado, portanto sem valor, como qualquer outra sensação nossa.
Ficamos portanto com as nossas sensações por única «realidade», inútil que realmente tem aqui certo valor, mas é uma conveniência para frasear. De «real» temos apenas as nossas sensações, mas «real» (que é uma sensação nossa) não significa nada, nem mesmo «significa» significar qualquer coisa, nem sensação tem um sentido, nem «tem um sentido» é coisa que tenha sentido algum. Tudo é o mesmo mistério. Reparo, porém em que nem tudo pode significar coisa alguma, um «mistério» é palavra que não tem significação. "
s.d.
(Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968. - 218.).

Um comentário:

  1. Cada qual constrói o retrato do semelhante não de acordo com as reais características, mas sim amparado pelos próprios sentimentos, pela vivência e sobretudo pelo grau de antipatia estabelecido com tal personagem, ou com suas obras.Cada qual parece ser aquilo que desperta no outro, e não o que é realmente. A imagem que crie de Pessoa, muitas vezes até a mim confunde. Uma vez que aos imortais atribuen-se os mais diversos perfis, aminha opinião sobre ele é cheia de dúvidas gerais e de certezas específicas. Esquizifrenia, pscografia ou talento simplesmente? Só talento não... não, muito mais do que apenas talento, um grau de inteligência superior, vasta cultura, abundante conhecimento e um espírito precocemente envelhecido. Passou prla vida apressado, e, ainda assim, foi como se , vagarosamente, tivesse vivido centenas de anos. Amadurecimento não adquirido, maturidade inata. Poesia a traspirar filosofia, filosofia a poetizar a vida, amor, a terra, o cotidiano de um homem apaixonado pelas letras e pronto para compartilhar experiências e sentimentos. Visão simplista? pode ser... Frequentemente me pergunto: Por que viveu tão pouco?Eu mesma me respondo: e precisava mais? Para falar dele basta o nome: Fernando Pessoa, em pessoa e nome ou em heterônimos. É necessário mais?Vidas somadas, inspiração mult´plicada! O alumbramento advindo de fontes diversas fez do homem um poetamúltiplo e do poeta u, artista plural.(Maria da Graça Almeida)

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